Amizade
Descobri que em japonês a palavra ensaio é 随筆, zuihistu, e significa literalmente “seguir o pincel”. Aparentemente os ensaios na tradição japonesa carregam bastante reflexão pessoal e digressões. Seguem o fluxo do pincel. Achei bonito isso e usei de inspiração para tentar escrever as linhas abaixo.
Uma coisa que gosto de fazer é ver como um mesmo verbete é tratado em diferentes idiomas na Wikipedia. Resolvi fazer o experimento com “amizade”. Comecei pelo português: como de costume, o texto traz um apanhado de coisas, por vezes meio desconexas, mas que de forma geral abrangem bem o assunto.
Mudei para o japonês e foi meio assustador: uma linha definindo o termo, uma outra linha falando da amizade na Bíblia (???) e uma seção destinada a discutir como é impossível amizade entre homens e mulheres heterossexuais. Saí rapidinho dali.
Fui então para o holandês. Página sucinta também, mas pelo menos fala que amizade independe de gênero. O artigo traz uma lista de sinônimos para vriend (pronuncia-se igual em inglês, friend) e lá tem: 'kameraad', 'kornuit', 'makker', 'maat', 'amigo', 'gabber', 'slapie', 'mattie', 'bro'. O que “amigo” está fazendo ali no meio? Curioso.
No final do artigo, uma seção para explicar que em holandês (assim como no alemão) não há uma palavra para namorada/o. Usa-se vriend também e aí vai do contexto para entender.
Quando eu ainda frequentava o Twitter, era normal aparecerem discussões sobre o tema da amizade. Lembro que acontecia com uma certa frequência alguém se queixar da dificuldade de fazer amigos na vida adulta e um bando de gente super bem-resolvida ir lá esculhambar a pessoa solitária diagnosticando que o problema era ela.
Essa galera rapidamente enchia a boca pra explicar que na verdade é muito fácil e que falta dedicação e empenho, que hoje em dia ninguém mais “cultiva afetos” (eita expressão ruinzinha).
Talvez os tuiteiros até tenham um ponto. Fazer amigos é um trabalho de cultivo mesmo. É preciso despender tempo e energia para fazer brotar algo mais que um coleguismo.
Mas vejam bem, se 28% da população brasileira diz ter no máximo um amigo próximo, há algo mais aí, não?
E talvez se eu tivesse ficado na minha cidade natal, ou mesmo em Floripa, eu também poderia me juntar à horda dos que afirmam que o problema está com quem não tem amigos, eles que devem estar fazendo algo de errado. Mas aí eu me mudei pra Holanda. E depois voltei pro Brasil, mas pra uma cidade diferente. E aí eu virei a esquisitona sem amigos.
Na Holanda, foi muito difícil conseguir estabelecer algum tipo de vínculo. Holandeses são simpáticos e gentis, mas a sensação que eu tive é que eles preferem não aprofundar os laços.
Na verdade, eles gostam de manter a vida social deles organizada (já comentei sobre isso em um outro texto meu). Fazer novos amigos requer abrir espaço na agenda e aí melhor não.
Algo bastante normal lá é manter o mesmo grupo de amigos, feito na infância, a vida toda. Achei isso uma loucura. Ter um ou outro amigo da infância, quem sabe alguns da adolescência e depois uns outros da faculdade e/ou trabalho me parecia ser o padrão.
Holandeses nunca vão entender esse meme maravilhoso:
Não por acaso, apenas na página em holandês sobre amizade encontrei essa informação aqui: “A abordagem psicológica evolucionista do desenvolvimento humano levou à teoria do chamado número de Dunbar, proposta pelo antropólogo britânico Robin Dunbar. Ele teorizou que existe um limite de cerca de 150 pessoas com as quais um ser humano pode manter relações sociais estáveis.”
Assim, acabei me relacionando mais com outros expatriados e alguns poucos holandeses dispostos a abrir um pouco de espaço na agenda (sempre marcando com bastante antecedência, nada de espontaneidade! Um dos amigos que fiz foi nosso vizinho de porta. Certa vez mandei um zap perguntando se ele queria vir tomar uma cerveja ali no nosso quintal. Era sábado à tarde. Ele respondeu dizendo que não mas que poderíamos marcar para dali duas semanas).
De volta ao Brasil, pensei que a integração seria mais fácil. Londrina é uma cidade fechada: todo mundo que não é daqui concorda sobre isso, mas os locais ouvem isso com um certo espanto. Talvez, assim como os holandeses, os londrinenses tenham seus grupos de amigos de infância e nem se deem conta de que acessar esses grupos é muito difícil para quem é de fora.
Novamente a opção é procurar por quem está numa situação parecida, forasteiros tentando pertencer a essa cidade, seja lá o que isso signifique.
A página em português é a única que traz a informação de que hoje, 20 de julho, é o dia do amigo. Tem até um link para um outro artigo sobre a data. Lá, sou informada que: “Dia do Amigo é uma data proposta para celebrar a amizade entre as pessoas. No Brasil, Uruguai, Argentina e Moçambique a data mais difundida para esta celebração é 20 de julho, aniversário da chegada do homem à lua.”
O que uma coisa tem a ver com a outra? Segundo o texto, um médico argentino mandou muitas cartas para seus amigos nesse dia para comemorar o feito da humanidade. Achei uma explicação meio insatisfatória, mas se pensar que o dia dos namorados é invenção do pai do Dória, então ok, fiquemos assim.
Para encerrar minhas digressões sobre amizade com meu pincel virtual, trago uma cena do filme iraniano “Gosto de cereja”, de 1997:
Obrigada aos meus amigos que continuaram comigo apesar de eu ter ido tantas vezes. Espero um dia ficar. Só não sei ainda onde vai ser.
Até uma próxima,
Buca.




quando a gente muda de cidade pode não ser tão difícil conhecer pessoas, mas precisa de tempo pra uma amizade se aprofundar. daí que tô sempre sentindo falta dos amigos que me conhecem há vinte, trinta anos. eu gosto das profundidades, e a profundidade exige tempo. grata pelo seu texto!
“Fazer novos amigos requer abrir espaço na agenda…” uma das melhores frases que já li e vai me ajudar também nesse processo de novas amizades numa cidade nova