Há um pedacinho da Bélgica na Holanda. Literalmente. Na verdade são vários pedacinhos. E tem pedacinhos da Holanda dentro dos pedacinhos da Bélgica dentro da Holanda. Ficou confuso? Porque é mesmo. Bem vindes a mais uma edição da newsletter e o tema aleatório de hoje é: enclaves (e contra-enclaves).
Antes um pequeno momento Wikipedia: enclave é um território dentro de outro território. Tipo uma ilha, mas ao invés de água, o enclave está cercado por uma outra cidade, estado ou país. Já contra-enclaves são enclaves dentro de outros enclaves. Agora vamos ao que interessa.
Tudo começou quando fui procurar uma rota até Breda e me deparei com isso aqui no Google Maps:
Como assim tem um território da Bélgica dentro da Holanda e ainda por cima perto de casa? Desisti de Breda e fui visitar esse lugar louco e tentar entender melhor. Pelo visto a treta é antiga, e a disputa dos territórios começou ainda na Idade Média. Quando Bélgica e Holanda resolveram ser territórios independentes, a coisa só complicou ainda mais. Em 1980 os dois países resolveram acertar as contas e ver direitinho qual pedaço pertencia a quem. O trabalho levou quinze (!!!) anos e foi concluído em 1995. O resultado é esse aí de cima.
São 30 enclaves – metade de todos os enclaves do mundo – concentrados nessa pequena porção de terra. A parte holandesa chama-se Baarle-Nassau, e os enclaves belgas formam a cidade de Baarle-Hertog. Há, ainda, sete contra-enclaves holandeses, ou seja, pedaços de Baarle-Nassau dentro de Baarle-Hertog. O mapa já parecia caótico, mas a realidade é ainda mais estranha que a ficção cartografia.
As pessoas foram vivendo suas vidas e ocupando os espaços acreditando que estavam em um ou outro país. Até que a partir de 1980 as novas medições baseadas em antigos tratados começaram a dizer a qual país elas pertenciam “de fato”. Numa situação totalmente kafkiana das ideias, uma moradora de 84 anos que viveu a vida toda achando que estava na Bélgica foi comunicada que sua casa na verdade estava na Holanda. “Como assim vou ter que mudar de cidadania e todas as complicações disso aos 84 anos?”, ela questionou. Os cumpridores da burocracia alegaram que não havia nada a ser feito (nunca há). Mas como todo brasileiro sabe, a burocracia pode ser uma coisa estúpida às vezes. De acordo com os antigos tratados, a posição da porta de entrada determinava o país a que a casa pertencia. A porta dela estava na Holanda, mas a janela na Bélgica. A solução foi mudar as duas de lugar e pronto, ela voltou a morar na Bélgica.
Fronteiras são coisas que não fazem lá muito sentido, mas elas ficam ainda mais absurdas ao andar por Baarle-Nassau e Baarle-Hertog. Comecei a me questionar porque diabos eles resolveram deixar essa confusão toda e no final já estava questionando o absurdo da própria existência. Resolvi parar para almoçar e preencher o vazio existencial com croquete e cerveja.
(Embora tenha comido em um café na parte belga, descobri que ele pertence a uma rede holandesa que emprega sobretudo pessoas com síndrome de down. Achei uma iniciativa de inclusão muito legal.)
Por falar em cerveja, tem uma loja que está tanto na Holanda quanto na Bélgica. A parte holandesa faz parte de um contra-enclave, o menor do mundo. A plaquinha explicando sobre o local conta que antes do Euro a loja tinha dois caixas, um para cada moeda (ela precisa pagar impostos para os dois países? E os serviços de água, lixo, luz e internet, como ficam? Sou uma pessoa traumatizada pela burocracia, como vocês podem perceber. Aparentemente há uma colaboração entre os municípios em relação a esses serviços, mas parece que há algumas complicações alfandegárias: dependendo da origem da cerveja importada, ela precisa entrar por uma porta ou outra, segundo esse sáite).
O mundo é mesmo um lugar doido, cheio de coisas inusitadas. Pro meu gosto, há fronteiras demais. Talvez o problema nem sejam as linhas imaginárias, mas as regras bem reais sobre quem pode ou não cruzá-las. Assim como John Lennon, torço por um mundo que possa ser compartilhado por todas as pessoas.
Doei doei,
Buca.
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Meu deus do céu, um nó se deu na minha cabeça, mas achei a história divertida!
que loucura! conhecia parte da história, mas as fotos são impressionantes. obrigada por mais uma edição ☺️