Meu doutorado e o fim do Twitter: um ensaio sobre como ficção científica, tecnocracia e Elon Musk se conectam
O texto de hoje é um pouco diferente. Ano passado eu resolvi tentar escrever um ensaio. Não sabia muito bem o que fazer com ele e decidi compartilhá-lo aqui. Espero que seja uma leitura interessante.
Segundo a informação que constava no meu perfil no Twitter, fiz minha conta por lá em abril de 2009. Na época, eu estava no meu quarto semestre da faculdade de História e tinha 21 anos. O Twitter me acompanhou durante toda a minha formação acadêmica. Quando entrei no Mestrado e depois no doutorado, comemorei por lá. E também reclamei dos prazos, da pressão e das exigências burocráticas. O Twitter, no entanto, nunca foi apenas um micro-blog para mim. Talvez o maior valor da rede social fosse poder acompanhar as notícias em tempo real. Além disso, os tweets em algum evento (como as Copas do Mundo, por exemplo), criavam um sentimento de comunidade divertido de ser partilhado.
Quando a SpaceX lançou um Tesla ao espaço em fevereiro de 2018, o Twitter em peso acompanhou o lançamento. Muitas pessoas estavam admiradas, enquanto outras teciam críticas ao desperdício de recursos.
A tecnocracia
No porta-luvas do carro, foi colocado uma cópia (em uma espécie de CD) da trilogia de livros “Fundação”, do escritor Isaac Asimov. Isso me chamou a atenção porque justamente nessa mesma época meu foco estava nessas e em outras histórias de ficção científica publicadas por membros de um grupo denominado The Futurians, do qual Asimov fazia parte. O grupo foi atuante de 1938 a 1945 e reunia jovens, principalmente de esquerda, aspirantes a escritores. Quando “Fundação” foi lançada ao espaço (literalmente) eu estava pesquisando no Eaton Collection, o maior acervo de ficção científica do mundo, como parte do meu doutorado sanduíche.
Asimov escreveu as primeiras histórias da Fundação enquanto um Futurian. A obra é considerada expoente do pensamento tecnocrático que dominava a ficção científica dos anos 1940. Mas os Futurians não eram de esquerda? A tecnocracia é de direita ou esquerda? Afinal de contas, o que diabos ela é?
A ideia de que as tomadas de decisões importantes deveriam sair das mãos de políticos corruptos ou empresários despreparados e passar para aqueles que poderiam realizá-las de forma racional e científica ganhou força no início do século XX nos Estados Unidos. Nessa visão de mundo, tudo seria governado por leis naturais, bastaria apenas descobrir e aplicar essas leis. Quem poderia fazer isso seriam aqueles que passaram pelo treinamento técnico – os engenheiros.
Um exemplo ilustrativo desse pensamento pode ser encontrado nas formulações do engenheiro Frederick Taylor, responsável por criar a “administração científica” (conhecida também como “taylorismo”). Taylor acreditava ter descoberto as leis do trabalho e produtividade ao estudar a produção de uma fábrica. Para ele, seu sistema de divisão do trabalho diminuiria custos e aumentaria a produtividade.
Seria possível organizar não apenas o trabalho e a fábrica, mas a própria sociedade? Foi o que pretendeu Howard Scott, um dos principais nomes da tecnocracia nos Estados Unidos. Na década de 1920, Scott fez parte do círculo de Thorstein Veblen, professor de economia e um dos nomes da New School for Social Research (hoje apenas New School), uma universidade fundada por intelectuais progressistas. Veblen idealizou o “soviete dos técnicos”, grupo composto por engenheiros, técnicos e economistas que deveria tomar e organizar o sistema industrial do país.
Scott incorportou algumas ideias formuladas por Veblen, mas ele tinha sua própria visão sobre o sistema de preços e a necessidade de alterá-lo. Scott acreditava que a energia seria uma métrica muito mais eficiente para a produção e distribuição de recursos. Para entender melhor a energia empregada na indústria ele fundou a Technical Alliance, com o objetivo de conduzir uma grande pesquisa nacional. A aliança durou pouco e não conseguiu cumprir o objetivo de Scott. Ao longo da década de 1920, as pessoas foram perdendo o interesse nas ideias de Scott, mas isso mudou com a quebra da bolsa de valores de Nova York em 1929 e a subsequente crise econômica que se instalou nos Estados Unidos.
No início da década de 1930, Scott aliou-se ao chefe do departamento de engenharia industrial da Columbia University, Walter Rautenstrauch, e juntos criaram o Commitee on Technocracy, cujo objetivo era continuar a pesquisa iniciada por Scott na década anterior. A crise não dava sinais de que passaria tão cedo e ganhavam força teorias que propunham mudanças. Nessa mesma época, por exemplo, o partido comunista também crescia nos Estados Unidos. Para o comitê, no entanto, as outras teorias não davam destaque à presença e importância da tecnologia na sociedade. De acordo com a visão deles, essa nova tecnologia poderia trazer abundância ou crise, a depender da forma como era administrada. Ao visar apenas o lucro, empresários e políticos conduziram o país ao caos, mas com a aplicação de métodos racionais e científicos, essa mesma tecnologia poderia proporciar harmonia e abundância.
O auge do interesse público na tecnocracia ocorreu entre 1932 e 1933 e Scott aparecia com frequência na mídia como seu porta-voz. Um dos motivos desse interesse era a forma como os tecnocratas abordavam o problema do desemprego. Assim como outros grupos, eles também destacavam o papel que a tecnologia tinha nisso: a pesquisa conduzida pelo Comitê mostrou que em 1902, eram necessárias 1302 horas de trabalho humano para fazer um carro e, em 1932, esse número havia caído para apenas 19 horas1. De acordo com os tecnocratas, criar novos empregos não era uma saída possível, pois o mercado não absorveria a produção de excedentes, como já vinha acontecendo inclusive. Para eles, o problema era tecnológico e nenhuma outra organização seria capaz de resolvê-lo a não ser a tecnocracia. Era preciso abolir os lucros privados e equilibrar produção e consumo. Ainda que os membros do Comitê evitassem falar em “capitalismo” e usassem “sistema de preços”, muitos socialistas viram similaridades entre os discursos e se aproximaram da tecnocracia.
Scott passou a ser o símbolo da tecnocracia, mas uma série de reportagens que revelaram que ele na verdade não tinha formação acadêmica em engenharia produziu uma diminuição no interesse da mídia em escutá-lo. Além disso, desentendimentos internos sobre a tecnocracia levaram ao fim o Commitee on Technocracy. Parecia ser o fim da tecnocracia e vários jornais inclusive o declararam. No entanto, muitos americanos e canadenses continuaram interessados na tecnocracia e criaram grupos para discutir e promovê-la. Antigos membros do Commitee on Technocracy fundaram o Continental Commitee on Technocracy, que acabou absorvendo diversos grupos e, em maio de 1933, contava com 250.000 afiliados de setenta lugares diferentes. Scott fundou a Technocracy Incorporated, e também conseguiu reunir milhares de seguidores, principalmente na Califórnia onde, décadas depois, a tecnocracia parece ter ganhado força novamente.
Para Scott, a energia era o elemento mais básico do universo, tanto os seres humanos quanto as máquinas precisavam de energia e por isso essa deveria ser a medida. Ele passou a fazer planos mais concretos para o Estado tecnocrático, o “Technate”. Nele, a tecnocracia não seria implementada apenas nos Estados Unidos, mas em toda a América do Norte, América Central e até partes da América do Sul. Assim, todos os recursos necessários para o funcionamento do Technate estariam garantidos. Percebe-se aí uma continuidade do discurso imperialista do “destino manifesto” dos Estados Unidos.
No Technate, certificados de energia seriam distribuídos igualmente entre a população; eles não seriam transferíveis nem cumulativos e deveriam ser gastos no período previsto. De acordo com os tecnocratas, as máquinas tomarem o posto dos humanos no trabalho era algo positivo – para eles, a ética protestante de trabalho já não fazia sentido em uma sociedade tecnológica. Segundo os cálculos dos tecnocratas, apenas uma parcela dos adultos precisaria trabalhar e, ainda assim, não mais do que vinte horas por semana.
Todas as decisões seriam tomadas por técnicos. Isso significa que não haveria nenhum tipo de participação popular no Technate. Professores escolheriam a pessoa responsável pela educação, médicos elegeriam um de seus pares para coordenar a saúde, e assim por diante. Essas pessoas por sua vez escolheriam uma dentre elas para ser a responsável geral, ou “diretora continental”.
Scott planejou o funcionamento do Technate, mas não os passos necessários para implementá-lo. Os tecnocratas insistiam em afirmar seu movimento como apolítico, o que, no fim das contas, fez com que ele perdesse força por não ter um plano de ação. Para eles, a sociedade perceberia naturalmente que um Estado tecnocrático era o melhor e quando o momento chegasse, os técnicos assumiriam o poder. Outro motivo para o enfraquecimento do movimento tecnocrático foi a implementação do “New Deal” pelo governo de Franklin Roosevelt a partir de 1933 que permitiu que os Estados Unidos começassem sua recuperação econômica. Com isso, muitos já não viam mais necessidade de uma mudança drástica na sociedade.
Apesar da diminuição do interesse público pela tecnocracia, ainda havia aqueles dedicados à causa, como o canadense Joshua Halderman. Ele atuou como líder da Technocracy Incorporated no país de 1936 a 1941 e chegou a ser preso em 1940 por conta disso (o Canadá proibiu diversas organizações durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo as tecnocráticas). Em 1950, quando decidiu se mudar com a família para a África do Sul, Halderman já havia desistido da tecnocracia. Curiosamente seu neto, Elon Musk, recuperou o interesse do avô pelo assunto décadas depois. Voltarei a eles, mas antes um breve panorama da relação da tecnocracia com um outro personagem interessante, a ficção científica.
Ficção científica e tecnocracia
O auge do movimento tecnocrático nos Estados Unidos coincidiu com a difusão da ficção científica no país através das revistas pulps. As pulps ficaram conhecidas por esse nome por causa do papel utilizado, o woodpulp, mais barato que o das slicks, revistas de prestígio. Além do papel, as pulps se contrapunham também no conteúdo: histórias ficcionais feitas para serem lidas rapidamente e passadas adiante. Havia mais de duzentas pulps diferentes à venda, geralmente cada uma destinada a um tipo de história ou estilo narrativo. Em 1926, Hugo Gernsback, um imigrante luxemburguês, lançou a Amazing Stories, pulp dedicada ao que ele chamou de “scientific fiction”, “o tipo de história de Jules Verne, H. G. Wells e Edgar Allan Poe – um romance encantador misturado com fato científico e visão profética”2. O nome não pegou, e foi substituído por science fiction, mas a ideia sim e logo a Amazing Stories já contava com uma tiragem de 100.000 exemplares. Se no começo a inspiração vinha de nomes antigos, logo os Estados Unidos passaram a produzir uma ficção científica própria, moldada para a Amazing Stories e outras pulps que foram criadas na sequência. E essa ficção científica incorporou as ideias do seu tempo, incluindo claro a tecnocracia.
Escritores de outras pulps passaram a adaptar as histórias para o novo estilo literário e a ficção científica americana tomou de empréstimo elementos de gêneros já populares entre os leitores do período. Isso fez com que algumas histórias fossem acusadas de serem “faroestes no espaço”, ou seja, transposições de histórias de aventura apenas em um cenário diferente. Aos poucos, no entanto, a ficção científica foi desenvolvendo suas especificidades. Cabe destacar aqui que essa construção da ficção científica americana foi um processo elaborado em conjunto por autores, editores e, num movimento inédito, também por leitores. O “fandom” (a própria palavra ganhou força a partir dessa experiência com os fãs da ficção científica da década de 1930 em diante) organizou conferências, produziu fanzines e forneceu novos autores e editores para as pulps, já em sintonia com os gostos da comunidade leitora.
No movimento de criar uma tradição própria, a ficção científica incorporou a narrativa das “edisonades”. O termo foi cunhado em 1993 por John Clute para descrever “qualquer história que date do final do século XIX em diante e apresente um herói-inventor-masculino-jovem-americano que engenhosamente se livra de situações apertadas e que, ao fazê-lo, se salva da derrota e da corrupção, e seus amigos e nação de opressores estrangeiros”3. O nome deriva de Thomas Edison, inventor americano muito presente no imaginário do país. Edison foi um inventor auto-didata e ele e outras figuras alimentaram uma ideia de excepcionalidade: não era preciso cursar uma faculdade nem trabalhar com os pares, era possível auto-fazer-se gênio. Os “heróis” das histórias de ficção científica das pulps representavam e alimentavam esse mito. Assim, a ficção que leva ciência em seu nome tinha na realidade pouquíssimo em comum com o modo como ela era feita de fato. Um outro modo ficcional, que em alguma medida nasceu dentro do fandom da ficção científica, também se alimentou e alimentou essa ideia de excepcionalidade: as histórias em quadrinhos dos super-heróis. Vale lembrar de Super-Homem, Batman, Capitão América, todos lançados na decáda de 1940 e que continuavam a narrativa de “homens sozinhos resolvendo problemas complicados”.
Apesar do movimento tecnocrático ter perdido força ao longo da década de 1930, na ficção científica do início dos anos 1940 ele ainda dominava – mesmo entre grupos tão distintos como os Futurians e os “Campbellianos”. Os Futurians, como dito acima, reunia jovens progressistas tentando trabalhar profissionalmente com a ficção científica. Já os Campbellianos eram autores mais conservadores ligados a John W. Campbell Jr., editor da consagrada pulp Astounding Science Fiction. Embora possa parecer que Futurians e Campbellianos eram polos opostos (e às vezes eram mesmo), havia também aproximação entre eles, como a tecnocracia, que circulou entre ambos. Outro ponto em comum foi o escritor Isaac Asimov, que pertenceu aos dois grupos. “Fundação” foi escrita nessa época e carrega essa influência dupla.
Como visto acima, não era incomum que socialistas e comunistas se aproximassem da tecnocracia. Alguns Futurians chegaram inclusive a fazer um curso sobre tecnocracia com Howard Scott. O líder do grupo, John Michel, conhecido por pregar que a ficção científica deveria se engajar com as questões políticas de seu tempo, escreveu duas histórias a respeito da tecnocracia. Na primeira, os Estados Unidos estão atravessando uma série de revoltas e o país está um caos. Uma cientista descobre a energia atômica e seu namorado, junto com outros cientistas, se apodera dessa descoberta para tomar o poder nos Estados Unidos e instalar o Estado tecnocrático. A segunda história é uma continuação da primeira, e mostra como apesar de ter conseguido acabar com a crise econômica, os cientistas transformaram os Estados Unidos em uma ditadura. A ironia dos Estados Unidos terem entrado em uma guerra mundial em nome da liberdade não escapou aos Futurians, que decidiram se afastar da tecnocracia e defender a democracia. As duas histórias de Michel mostram esse movimento de aproximação e depois de recusa em relação à tecnocracia. Elon Musk e outros bilionários do Vale do Silício que voltaram seu interesse para a tecnocracia no século XXI não buscaram nela aquilo que interessava aos Futurians, mas sim ao que movia os Campbellianos. Enquanto os Futurians apostavam no fim da desigualdade através da tecnologia, os Campbellianos pareciam focar na autoridade dos engenheiros para tomarem decisões. E nesse ponto Asimov estava mais perto de Campbell do que dos Futurians.
Em “Fundação”, o Império Galáctico, que abrange toda a Via Láctea e milhões de planetas, está em declínio. Esta queda, no entanto, não é perceptível, e apenas o matemático Hari Seldon foi capaz de percebê-la, através da psico-história. Seldon previu, através de cálculos, que um período “de trevas” de 30.000 anos se seguiria à queda. O matemático então planejou o encurtamento do período de trinta para mil anos e um segundo império, erguido a partir da fundação de um planeta, chamado Fundação, composto apenas por cientistas.
Na obra, o matemático Hari Seldon traça o destino de quadrilhões de pessoas e elas seguem seu plano sem saber. Seldon e os demais que continuam seu plano agem sem consultar as pessoas envolvidas: eles supostamente sabem o que é o melhor para a humanidade. Essa ideia permeia toda a obra de Asimov, conforme o Professor Jari Käkelä4:
In Asimov’s world of reason, the Great Men or other enlightened actors are recurrently obliged (by their more sophisticated understanding) to take control. This benevolent but authoritarian control of society to avert crises, often a kind of enlightened absolutism, seems to be at the heart of Asimov’s series and reflects Campbell’s meritocratic ideals.
No mundo da razão de Asimov, os Grandes Homens ou outros atores iluminados são recorrentemente obrigados (por sua compreensão mais sofisticada) a assumir o controle. Esse controle benevolente, mas autoritário, da sociedade para evitar crises, muitas vezes uma espécie de absolutismo esclarecido, parece estar no centro da série de Asimov e reflete os ideais meritocráticos de Campbell (tradução própria).
Elon Musk declarou diversas vezes que “Fundação” é uma das obras favoritas dele e que o influencia enormemente. A visão de que aquele que detém um olhar técnico é o mais habilitado para tomar as decisões, sem necessidade de consultar os envolvidos, parece ter moldado uma grande parte do pensamento de Musk. Em uma entrevista à revista Rolling Stone5 em 2017, Musk afirmou: “The lesson I drew from that [Foundation] is you should try to take the set of actions that are likely to prolong civilization, minimize the probability of a dark age and reduce the length of a dark age if there is one.” (A lição que tirei de lá [Fundação] é que você deve tentar tomar o conjunto de ações que provavelmente prolongarão a civilização, minimizarão a probabilidade de uma idade das trevas e reduzirão a duração de uma idade das trevas, se houver uma.) Musk se vê (e se vende) como um Hari Seldon, alguém capaz de decidir os rumos da humanidade. Afinal, quem é ele e como ele se tornou um dos homens mais ricos do mundo?
Ficção científica, muskismo e a nova tecnocracia
Elon Musk nasceu em Pretoria, África do Sul, em 1971. Aos 17 anos, decidiu ir para os Estados Unidos, passando primeiro pelo Canadá e fazendo assim o caminho inverso do seu avô. Quando Joshua Halderman chegou à África do Sul, o país estava vivendo sob o regime do apartheid. Em vigor desde 1948, o apartheid era um sistema de segregação racial que garantia que o país fosse dominado política, social e economicamente pela minoria branca. Em 1950, ano em que o avô de Musk chegou na África do Sul, foi instituído o "Population Registration Act", que dividiu as pessoas em quatro “raças”. Os locais de residência passaram a ser determinados de acordo com a classificação racial, e a população negra foi obrigada a morar em áreas conhecidas como bantustões. Os serviços públicos eram bem mais precários para a população não-branca, bem como as opções de emprego. Para manter esse sistema em funcionamento durante quase cinquenta anos, apenas pessoas brancas podiam votar e protestos eram duramente reprimidos.
Mas por quê falo do apartheid? Esse sistema cruel de segregação não é apenas um pano de fundo na história de Elon, mas um dos responsáveis pelo seu “sucesso”. O pai de Elon se beneficiou6 desse sistema e fez fortuna com ele. E foi esse dinheiro7 que financiou a primeira empresa que Elon e seu irmão abriram, em 1995, e que quando foi vendida quatro anos depois deu a Elon 22 milhões de dólares.
Nesse mesmo ano, Elon fundou uma nova empresa, X.com, de serviço de e-mails e pagamentos, mas foi afastado pelos investidores do cargo de CEO. X.com fundiu-se com outra empresa e ele voltou a ser CEO mas foi novamente afastado por suas decisões equivocadas. O novo CEO renomeou a empresa para PayPal, que foi comprada pelo eBay em 2002, o que deu a Elon 175 milhões de dólares. Com o dinheiro da venda da PayPal, ele fundou a SpaceX, empresa que produz foguetes e cujo objetivo final é “permitir que as pessoas vivam em outros planetas”. Musk também virou o maior acionista da Tesla, indústria de automóveis elétricos e, desde 2008, é seu CEO.
A Professora Jill Lepore definiu a fase atual do capitalismo como “muskismo”. O muskismo, segundo ela, é esse capitalismo “extremo, extravagante e extraterrestre”. É um capitalismo baseado em especulações – e não apenas da bolsa de valores, mas em novos níveis, incluindo criptomoedas e NFTs. Vale dizer que Elon Musk sabe muito bem como manipular esse capitalismo: em 2021, ele anunciou que a Tesla havia investido um bilhão e meio de dólares em bitcoins e que a empresa passaria a aceitar essa criptomoeda como forma de pagamento, o que levou a uma super valorização dela; um ano depois, a Tesla vendeu cerca de 75% de seus bitcoins por um preço muito mais alto do que comprou, garantindo assim um lucro astronômico graças à essa especulação. Ah sim, a Tesla também parou de aceitar bitcoins pelo dano ambiental que a mineração da moeda provoca. No final do ano passado, no entanto, Musk passou a apoiar outra criptomoeda, a dogecoin, e é possível comprar um Tesla usando dogecoin. E os danos ambientais? Foram “esquecidos”.
A questão climática, vale destacar, é manuseada sempre em benefício próprio, o que também é uma característica do “muskismo”. No muskismo, segundo Lepore, “las empresas se preocupan (de manera muy pública y apasionada) por todo tipo de desastres que acaban con el mundo, por la catástrofe demasiado real del cambio climático, pero con mayor frecuencia se preocupan por los misteriosos “riesgos existenciales”, o riesgos x, incluida la extinción de la humanidad, de la que, al parecer, solo los tecnobillonarios pueden salvarnos.”8
As soluções encontradas pelos bilionários para os problemas que em grande medida eles direta ou indiretamente são responsáveis são bastante rocambolescas. É claro, eles não tem interesse nenhum em mexer na raiz dos problemas e assim afetar seus lucros. Mas além disso há também o eco de uma narrativa que Lepore também identificou: a ficção científica. Para ela, esses bilionários entenderam mal o gênero. Mas será mesmo? Da ficção científica, Musk e cia. parecem ter tirado ao menos duas grandes lições: a de que um gênio pode sozinho resolver os problemas mais difíceis e de que a melhor alternativa para o mundo é ele ser gerido por técnicos. E Elon Musk se enxerga como esse engenheiro-gênio que pode salvar toda a humanidade. (Curiosamente, assim como Howard Scott cem anos atrás, Elon também não tem formação acadêmica em engenharia, embora viva afirmando o contrário.)
O novo dono do Twitter acredita (ou ao menos parece acreditar) que ele tem uma missão especial na Terra e, me perdoem o trocadilho, uma missão espacial. Através dos carros elétricos, foguetes e outras parafernálias tecnológicas, ele vai salvar a Terra da crise climática e a humanidade da extinção. Assim como Hari Seldon enviou cientistas para povoar um planeta para ser a base de um novo Império, Musk quer levar pessoas para colonizar Marte.
Musk, no entanto, não está em uma história de ficção científica escrita em 1940. Se a energia é mesmo a principal métrica como acreditava Howard Scott e os tecnocratas como o avô de Musk, aplicar uma grande quantidade dela para construir e enviar foguetes ao espaço é um desperdício imenso. Carros elétricos podem até parecer uma alternativa interessante, mas o ideal seria pensarmos em maneiras de melhorar o transporte coletivo e não o individual.
Ao pensar e agir dessa maneira, Musk se aproxima da tecnocracia promovida por Campbell na Astounding Science Fiction e não daquela pretendida pelos Futurians. Musk não vê contradição em ser um bilionário interessado em tecnocracia porque para ele a tecnocracia não é um modo de atingir uma sociedade mais justa, mas sim algo que lhe garante um poder privilegiado. E ele gosta muito do poder.
Elon Musk comprou o Twitter em outubro de 2022, por 44 bilhões de dólares. A partir de então, passou a decidir os rumos da plataforma de maneira errática. Quando foi lançado, em 2006, o Twitter continha a promessa das coisas novas e empolgantes. Com o tempo, ele passou a ser não apenas o local que reportava as notícias, mas contribuiu para que elas ocorressem – vale lembrar da Primavera Árabe de 2010, por exemplo. Parecia que as redes sociais poderiam ser um espaço aliado na luta pela democracia e contra as injustiças. Isso foi antes da eleição de Trump e Bolsonaro, dos escândalos da Cambridge Analytica e da compreensão que as redes sociais decidiram seguir pelo caminho do dinheiro, lavando as mãos pela responsabilidade na ascensão da extrema direita e dos discursos de ódio.
A internet de 2024 é um espaço dominado por meia dúzia de empresas gigantescas e nós, os usuários, somos arrastados pela lógica do like. Enquanto escrevo aqui, o Twitter continua feito um trem desgovernado (ou um Tesla no piloto automático9). Musk agora está atacando o ministro Alexandre de Moraes. Decidi fazer algo que já deveria ter feito há muito tempo e deletei minha conta. Espero que o Twitter vá para o espaço muito antes que os foguetes tripulados do Musk.
Esse e os demais dados relativos à tecnocracia foram retirados de William E Akin, Technocracy and the American dream: the technocrat movement, 1900-1941. Berkeley: University of California Press, 1977.
Hugo Gernsback. A New Sort of Magazine. Amazing Stories. New York, v. 1, n.1, p. 03, abr. 1926.
John Clute. Edisonade. The Encyclopedia of Science Fiction. Disponível em: <http://www.sf-encyclopedia.com/entry/edisonade>
Jari Käkelä. 2016. The Cowboy Politics Of An Enlightened Future: History, Expansionism, and Guardianship in Isaac Asimov’s Science Fiction. University of Helsinki
Neil Strauss. 2017. Elon Musk: The Architect of Tomorrow. Disponível em: < https://www.rollingstone.com/culture/culture-features/elon-musk-the-architect-of-tomorrow-120850/ >
Jill Lepore, em uma série de podcasts que discute a figura de Elon Musk, explica que o pai dele atuava no ramo de construções. Em um país segregado isso rendia muito dinheiro, afinal era preciso construir tudo duplamente. Disponível (em inglês) em: < https://www.bbc.co.uk/programmes/p0d7q0h8/episodes/downloads >
Em uma entrevista, Elon Musk negou e disse que nunca teve financiamento do pai. Ele recentemente também tem negado que seu pai fosse dono de uma mina de esmeraldas na Zâmbia, mas em entrevistas antigas gabava-se disso. Curiosamente essas entrevistas não estão mais disponíveis on-line, mas é possível acessar uma delas pelo Way Back Machine < https://web.archive.org/web/20140802011449/http://www.forbes.com/sites/jimclash/2014/07/28/elon-musk-tells-me-his-secret-of-success-hint-it-aint-about-the-money/ >
Jill Lepore. 2021. Elon Musk y los tecnobillonarios han leído mal la ciencia ficción. New York Times. Disponível em: < https://www.nytimes.com/es/2021/11/07/espanol/opinion/elon-musk-capitalismo.html >. Acesso em 01 fev. 2023
Christopher Cox. 2023. Elon Musk’s Appetite for Destruction. Disponível em: < https://www.nytimes.com/2023/01/17/magazine/tesla-autopilot-self-driving-elon-musk.html >
Eu gostei bastante do seu ensaio, foi completamente inesperado em uma newsletter que assinei para saber curiosidades sobre a Holanda, hahaha. Mas eu tenho grande interesse em Ficção Científica e não sabia de várias informações que você trouxe. Inclusive, fica o incentivo para fazer outros ensaios assim. A estrutura tá muito bem amarrada também, chegando ao Elon Musk e deixando clara a necessidade da explicação prévia.
Foi, sim, uma leitura bastante interessante! Eu não via o nosso momento atual como uma tecnocracia e agora precisarei refletir sobre isso...